Por Edson Hely Silva
Os povos indígenas em Pernambuco, no Nordeste, que durante muito tempo foram oficialmente chamados de “remanescentes” e conhecidos pelo senso comum como “caboclos”, através de confrontos, acordos, alianças estratégicas, simulações e reelaborações culturais, desenvolveram diferentes estratégias de resistência frente às diversas formas de violências, às invasões de seus territórios, ao desrespeito de seus direitos, à negação de suas identidades e às imposições culturais colonial. Questionando assim tradicionais explicações históricas, que defendem o destino trágico com o desaparecimento ou extermínio desses povos nos primeiros anos da colonização portuguesa, com sua mobilização os indígenas no Nordeste superam uma visão sobre eles como vítimas da colonização e afirmam seus lugares como participantes e sujeitos que (re) escrevem a História da Região e do Brasil.
No início do século XX, esses povos que oficialmente eram considerados extintos, iniciaram uma mobilização pelo reconhecimento étnico oficial e garantia de terras para viverem diante das constantes perseguições dos latifundiários. No Nordeste foram reconhecidos os Xukuru-Kariri em Alagoas, e em Pernambuco os Fulni-ô (Águas Belas), os Pankararu (Tacaratu), os Xukuru (Pesqueira), com a instalação entre os anos de 1920 – 1950 de postos do Serviço de Proteção ao Índio/SPI, em seus tradicionais locais de moradias.
Com o “milagre brasileiro” na década de 1970 e o avanço dos projetos agro-industriais, as pressões sobre as terras indígenas aumentaram, tanto as dos grupos reconhecidos oficialmente como as dos grupos ainda não reconhecidos. Os povos indígenas em pressionaram a FUNAI para obterem a garantia de seus direitos históricos. A partir da década de 1980, e principalmente depois da participação indígena nas mobilizações para a elaboração da Constituição Federal aprovada em 1988, onde se garantiu pela primeira vez na História do Brasil que o Estado brasileiro reconhecesse os povos indígenas com seus costumes, tradições e o direito a demarcação de suas terras, ocorreu o ressurgimento de vários povos indígenas em Pernambuco e no Nordeste.
Como foi visto os atuais povos indígenas em Pernambuco e no Nordeste, são resultados de deslocamentos de grupos nativos que foram concentrados em missões religiosas, e que devem ser compreendidos no quadro amplo das relações do mundo da Colonização portuguesa. Os aldeamentos, todavia, não representaram o fim dos grupos indígenas, mas novas possibilidades de reelaborações de suas expressões culturais e da identidade étnica.
São povos que, portanto, vivenciaram um processo dinâmico de reelaborações das suas identidades étnicas, de suas expressões culturais, em contextos de lutas pela terra, pela conquista e garantia de seus direitos sociais, a exemplos de uma educação e saúde diferenciadas. Esse fenômeno de “emergência étnica” que vem acontecendo nas áreas mais antigas da colonização a exemplo do Nordeste, foi chamado pela atual reflexão antropológica de etnogênese. Ou seja, o processo de emergência histórica de um povo que se auto define em relação a uma herança sociocultural, a partir da reelaboração de símbolos e reinvenção de tradições culturais, muitas das quais apropriadas no processo da colonização e relidas pelo horizonte indígena.
Assim por exemplo, é que os Xukuru do Ororubá celebram anualmente a Festa de Tamain em Cimbres (Distrito de Pesqueira), marco inicial da colonização no Agreste Pernambucano, onde foi instalada em 1661 a missão de Nossa Senhora das Montanhas, na Serra do Ororubá, pelos padres Oratorianos. Para a Igreja Católica Romana a festa é para Nossa Senhora das Montanhas. Para os Xukuru é para a “Mãe Tamain”.
Nas festas dedicadas a Tamain os Xukuru participam ativamente: desde a Procissão da Bandeira, dançando o Toré, devidamente “fardados” com o Tacó (vestimenta de palha tradicional Xukuru), na frente do templo católico em Cimbres, ao transporte do andor. Só os Xukuru têm o direito de carregar o andor e tocar a imagem. Esse monopólio sempre foi motivo de questionamentos e conflitos com as autoridades religiosas oficiais. Apesar disso, depois da Procissão gritando “Viva Tamain, Pai Tupã e o Cacique Xicão”, os Xukuru entram carregando o andor no templo, onde as lideranças postam-se em pé, próximas ao altar central, enquanto outros indígenas ocupam o corredor principal e as laterais. Ao final da missa os não-índios retiram-se, em reconhecimento e respeito aos indígenas, cedendo espaço para os Xukuru que dançam o Toré ao redor dos bancos entoando repetidas vezes seus cantos rituais tradicionais.
A festa indígena em Cimbres expressa as apropriações e reinterpretações pelos Xukuru dos espaços e símbolos religiosos coloniais. E, constituíram em uma forma de afirmação cultural-étnica, de fortalecimento nas reivindicações dos direitos indígenas. Como expressaram os Xukuru: “Mãe Tamain é aquela que leva a gente pra luta. Com a força de Mãe Tamain, ninguém pára a gente não. Mesmo quando nós era mais perseguido, nossa Mãe sempre protegeu nosso ritual aqui na Vila”. Pois “Tamain nasceu em Cimbres, ela era uma cabocla” (NEVES, 1999, p. 77; 118).
Se, por um lado, a introdução de um culto mariano fez parte da pedagogia evangelizadora missionária inicial junto aos Xukuru, em que o estímulo às devoções à imagem de Nossa Senhora das Montanhas comunicava bem mais que a pregação com palavras ou textos escritos estranhos à cultura indígena, por outro lado, os índios apropriaram-se, reelaboraram e releram a cultura colonial, a partir de seus horizontes e interesses. Pode-se pensar em uma situação semelhante ao caso da colonização espanhola no México: “O êxito da imagem cristã entre os índios é indissociável, portanto, de uma conjuntura inicial que em muitos aspectos resulta excepcional, pois une uma receptividade imediata e uma habilidade precoce às notáveis capacidades de assimilação, interpretação e criação”. (GRUZINSKI, 1994, p.182).
Assim como acontece entre os Xukuru do Ororubá, em todos os atuais aldeamentos indígenas em Pernambuco e no Nordeste, ocorrem anualmente festas originalmente para santos católicos romanos. Mas, as imagens e ritos cristãos tornaram-se símbolos relidos para os Xukuru e os demais povos indígenas, que em torno delas reconstruíram nexos sociais e culturais, demonstrando que os indígenas nunca foram apenas consumidores passivos da evangelização. Quando os Xukuru, assim como outros grupos indígenas, apropriaram-se das imagens cristãs católicas romanas, ocorreram relações em um movimento dinâmico que superou a hegemonia cultural cristã. Movimento este bem mais complexo do que uma suposta cristianização dos indígenas. Ouvindo os depoimentos e observando as práticas Xukuru, é possível perceber as muitas e diferentes estratégias que foram elaboradas frente à colonização: simulações, embates, associações, inversões.
Um exemplo disso ocorreu na Festa de Nossa Senhora das Montanhas em 1998, quando, na frente da procissão religiosa em direção para o interior da igreja, os Xukuru levavam uma faixa, onde se lia: “Chicão com teus familiares e amigos deixaste como recordação um pouco do seu sorriso”, lembrando o Cacique assassinado por fazendeiros, considerado a mais expressiva liderança na articulação, organização e mobilização contemporânea Xukuru para a retomada de suas terras. Os Xukuru apropriaram-se dos símbolos religiosos coloniais, dando-lhes um significado para sua organização e mobilização expressado naquele momento de culto público na Vila de Cimbres, um espaço também apropriado por eles.
No início do século XX, esses povos que oficialmente eram considerados extintos, iniciaram uma mobilização pelo reconhecimento étnico oficial e garantia de terras para viverem diante das constantes perseguições dos latifundiários. No Nordeste foram reconhecidos os Xukuru-Kariri em Alagoas, e em Pernambuco os Fulni-ô (Águas Belas), os Pankararu (Tacaratu), os Xukuru (Pesqueira), com a instalação entre os anos de 1920 – 1950 de postos do Serviço de Proteção ao Índio/SPI, em seus tradicionais locais de moradias.
Com o “milagre brasileiro” na década de 1970 e o avanço dos projetos agro-industriais, as pressões sobre as terras indígenas aumentaram, tanto as dos grupos reconhecidos oficialmente como as dos grupos ainda não reconhecidos. Os povos indígenas em pressionaram a FUNAI para obterem a garantia de seus direitos históricos. A partir da década de 1980, e principalmente depois da participação indígena nas mobilizações para a elaboração da Constituição Federal aprovada em 1988, onde se garantiu pela primeira vez na História do Brasil que o Estado brasileiro reconhecesse os povos indígenas com seus costumes, tradições e o direito a demarcação de suas terras, ocorreu o ressurgimento de vários povos indígenas em Pernambuco e no Nordeste.
Como foi visto os atuais povos indígenas em Pernambuco e no Nordeste, são resultados de deslocamentos de grupos nativos que foram concentrados em missões religiosas, e que devem ser compreendidos no quadro amplo das relações do mundo da Colonização portuguesa. Os aldeamentos, todavia, não representaram o fim dos grupos indígenas, mas novas possibilidades de reelaborações de suas expressões culturais e da identidade étnica.
São povos que, portanto, vivenciaram um processo dinâmico de reelaborações das suas identidades étnicas, de suas expressões culturais, em contextos de lutas pela terra, pela conquista e garantia de seus direitos sociais, a exemplos de uma educação e saúde diferenciadas. Esse fenômeno de “emergência étnica” que vem acontecendo nas áreas mais antigas da colonização a exemplo do Nordeste, foi chamado pela atual reflexão antropológica de etnogênese. Ou seja, o processo de emergência histórica de um povo que se auto define em relação a uma herança sociocultural, a partir da reelaboração de símbolos e reinvenção de tradições culturais, muitas das quais apropriadas no processo da colonização e relidas pelo horizonte indígena.
Assim por exemplo, é que os Xukuru do Ororubá celebram anualmente a Festa de Tamain em Cimbres (Distrito de Pesqueira), marco inicial da colonização no Agreste Pernambucano, onde foi instalada em 1661 a missão de Nossa Senhora das Montanhas, na Serra do Ororubá, pelos padres Oratorianos. Para a Igreja Católica Romana a festa é para Nossa Senhora das Montanhas. Para os Xukuru é para a “Mãe Tamain”.
Nas festas dedicadas a Tamain os Xukuru participam ativamente: desde a Procissão da Bandeira, dançando o Toré, devidamente “fardados” com o Tacó (vestimenta de palha tradicional Xukuru), na frente do templo católico em Cimbres, ao transporte do andor. Só os Xukuru têm o direito de carregar o andor e tocar a imagem. Esse monopólio sempre foi motivo de questionamentos e conflitos com as autoridades religiosas oficiais. Apesar disso, depois da Procissão gritando “Viva Tamain, Pai Tupã e o Cacique Xicão”, os Xukuru entram carregando o andor no templo, onde as lideranças postam-se em pé, próximas ao altar central, enquanto outros indígenas ocupam o corredor principal e as laterais. Ao final da missa os não-índios retiram-se, em reconhecimento e respeito aos indígenas, cedendo espaço para os Xukuru que dançam o Toré ao redor dos bancos entoando repetidas vezes seus cantos rituais tradicionais.
A festa indígena em Cimbres expressa as apropriações e reinterpretações pelos Xukuru dos espaços e símbolos religiosos coloniais. E, constituíram em uma forma de afirmação cultural-étnica, de fortalecimento nas reivindicações dos direitos indígenas. Como expressaram os Xukuru: “Mãe Tamain é aquela que leva a gente pra luta. Com a força de Mãe Tamain, ninguém pára a gente não. Mesmo quando nós era mais perseguido, nossa Mãe sempre protegeu nosso ritual aqui na Vila”. Pois “Tamain nasceu em Cimbres, ela era uma cabocla” (NEVES, 1999, p. 77; 118).
Se, por um lado, a introdução de um culto mariano fez parte da pedagogia evangelizadora missionária inicial junto aos Xukuru, em que o estímulo às devoções à imagem de Nossa Senhora das Montanhas comunicava bem mais que a pregação com palavras ou textos escritos estranhos à cultura indígena, por outro lado, os índios apropriaram-se, reelaboraram e releram a cultura colonial, a partir de seus horizontes e interesses. Pode-se pensar em uma situação semelhante ao caso da colonização espanhola no México: “O êxito da imagem cristã entre os índios é indissociável, portanto, de uma conjuntura inicial que em muitos aspectos resulta excepcional, pois une uma receptividade imediata e uma habilidade precoce às notáveis capacidades de assimilação, interpretação e criação”. (GRUZINSKI, 1994, p.182).
Assim como acontece entre os Xukuru do Ororubá, em todos os atuais aldeamentos indígenas em Pernambuco e no Nordeste, ocorrem anualmente festas originalmente para santos católicos romanos. Mas, as imagens e ritos cristãos tornaram-se símbolos relidos para os Xukuru e os demais povos indígenas, que em torno delas reconstruíram nexos sociais e culturais, demonstrando que os indígenas nunca foram apenas consumidores passivos da evangelização. Quando os Xukuru, assim como outros grupos indígenas, apropriaram-se das imagens cristãs católicas romanas, ocorreram relações em um movimento dinâmico que superou a hegemonia cultural cristã. Movimento este bem mais complexo do que uma suposta cristianização dos indígenas. Ouvindo os depoimentos e observando as práticas Xukuru, é possível perceber as muitas e diferentes estratégias que foram elaboradas frente à colonização: simulações, embates, associações, inversões.
Um exemplo disso ocorreu na Festa de Nossa Senhora das Montanhas em 1998, quando, na frente da procissão religiosa em direção para o interior da igreja, os Xukuru levavam uma faixa, onde se lia: “Chicão com teus familiares e amigos deixaste como recordação um pouco do seu sorriso”, lembrando o Cacique assassinado por fazendeiros, considerado a mais expressiva liderança na articulação, organização e mobilização contemporânea Xukuru para a retomada de suas terras. Os Xukuru apropriaram-se dos símbolos religiosos coloniais, dando-lhes um significado para sua organização e mobilização expressado naquele momento de culto público na Vila de Cimbres, um espaço também apropriado por eles.
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Fonte:
(Publicado in: GUILLEN, Isabel C. M. (Org.). Tradições & traduções: a cultura imaterial em Pernambuco. Recife, EDUFPE, 2008, p.215-230)
(Publicado in: GUILLEN, Isabel C. M. (Org.). Tradições & traduções: a cultura imaterial em Pernambuco. Recife, EDUFPE, 2008, p.215-230)
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