SÃO JOÃO/CAÔ: FESTA RELIGIOSA DOS
XUKURU DO ORORUBÁ
XUKURU DO ORORUBÁ
(PESQUEIRA-PE)
Enviado por Edson Silva*
Mulheres, crianças, jovens e homens xukurus, muitas pessoas curiosas se concentram por volta da três horas da tarde do dia 23 de junho na Vila de Cimbres, povoado no município de Pesqueira, interior de Pernambuco: vai começar “a busca da lenha”. No ritual realizado anualmente, os Xukuru caminham até cerca de dois quilômetros na caatinga e retornam com pedaços de paus e galhos secos que serão organizados na grande fogueira a ser acesa no início da noite, defronte a Igreja de Nossa Senhora das Montanhas (para os Xukuru “Nossa Mãe Tamain”).
A festa começara pela manhã com fogos de artifício e a banda de pífanos. Índios xukurus vindos das aldeias, foram chegando e se dirigindo ao Centro Social São Miguel. Vieram de caminhão, a pé ou a cavalo. Muitos trouxeram o “fardamento”: o saiote de fibras de caroá ou palha de côco que eles chamam “Tacó”. Além da barretina na cabeça, das braçadeiras, goleiras e tornozeleiras para dançarem o Toré. Uma dança coletiva que é iniciada ainda pela manhã no salão do Centro Social.
O sino da Igreja anuncia a hora da “busca da lenha” da qual participam índios e não-índios. A procissão para recolher madeira parte da frente da Igreja seguindo a bandeira de São João que é segurada pelo Cacique e lideranças indígenas, tendo ao lado ainda a banda de pífanos. Para os Xukuru esse ritual possui um sentido religioso profundo. Faz parte de um compromisso que deve ser renovado a cada ano. Retornando ao centro da Vila de Cimbres, depois de dar uma volta no templo católico romano, as madeiras são depositadas defronte dele, para fazer a grande fogueira.
No início da noite as fogueiras menores em frente às casas da Vila e também a grande fogueira comunitária defronte a Igreja estão acesas. Por volta das 19 horas começa a missa. Os Xukuru que se concentravam no Centro Social São Miguel seguem em fila indiana, juntamente com a banda de pífanos para dentro da Igreja, onde ocupam os bancos, as laterais e todos os cantos do templo. Finda a missa os Xukuru também em fila indiana seguindo o tocador do “Mibi” (a gaita) dão três voltas em torno da Igreja. Param defronte ao pátio do templo católico romano e dançam o Toré, dando várias voltas ziguezagueando em forma do “S” . Dão muitas vivas a “Seu João”, a “Mãe Tamain” (Nossa Senhora das Montanhas para os católicos romanos) e ao Pai Tupã.
Voltam para o salão do Centro Social onde continuam dançando o Toré até perto de meia-noite, quando vão para um local nas proximidades da Vila onde está uma pedra plana chamada Laje do Conselho. Naquele local em silêncio ficam esperando os conselhos dos Encantados, dos antepassados falecidos. Ocorrem incorporações de espíritos dos Encantados, que se manifestam pelos incorporados falando aos presentes atentos. Dançam Toré em cima da Laje. Aquele que escorregar na laje morrerá durante o ano, assim dizem e acreditam.
Depois desse ritual retornam ao Centro São Miguel onde dançam até as quatro da manhã. Já próximo ao amanhecer vão outra vez para frente da Igreja, dançam e dão voltas em torno do templo, encerrando suas obrigações. Dizem que no passado os índios mais idosos caminhavam descalços nas brasas da fogueira. A despedida é saudada com fogos. É dia quando os Xukuru começam a retornar para suas aldeias. Estarão de volta a Vila de Cimbres no dia dois de julho para a Festa de “Nossa Mãe Tamain”.
Os Xukuru são contabilizados em quase 10.000 indivíduos moradores em 24 aldeias, incluindo a de Cimbres, por toda a Serra do Ororubá. Além disso, aproximadamente 200 famílias habitam no Bairro “Xukurus” e em outros bairros da cidade de Pesqueira. Onde hoje está a Vila de Cimbres foi um antigo aldeamento fundado em 1639 pelos missionários Oratorianos. A colonização daquela região foi iniciada com grandes fazendas de gado de senhores de engenho do litoral.
Em 1879 atendendo os insistentes pedidos da Câmara Municipal, o Governo Imperial decretou a extinção do Aldeamento de Cimbres e as terras foram destinadas ao patrimônio do município e posteriormente repassadas para terceiros. Ao longo dos séculos as terras dos xukurus foram invadidas por fazendeiros, muitas famílias indígenas foram perseguidas, expulsas e até mortas. Outras passaram a trabalhar em suas próprias terras tomadas pelos fazendeiros. Algumas resistiram em pequenas glebas de terras, os “sítios” em locais de difíceis acessos. Os Xukuru eram chamados de caboclos, tendo assim suas identidades negadas e consequentemente o direito as suas terras. Apesar disso anualmente eles compareciam a Cimbres para realizarem seus rituais religiosos.
Vários documentos oficiais e cronistas fizeram registros sobre os Xukuru na Serra do Ororubá ao longo dos séculos. Em 1910 foi fundado o Serviço e Proteção aos Índios/SPI. Assim como outros povos indígenas no Nordeste ao tomarem conhecimento da existência de um órgão federal fundado para prestar assistência aos índios, os Xukuru iniciaram uma mobilização para obterem o reconhecimento pelo Estado brasileiro. Nas memórias orais Xukuru, encontramos relatos dessa mobilização contemporânea pelo reconhecimento oficial. Três índios foram a pé ao Rio de Janeiro procurar Marechal Rondon o fundador do SPI.
Com a ida ao Rio de Janeiro além do reconhecimento oficial, os Xukuru conquistaram o direito à instalação de um Posto do SPI em suas terras. Um passo político importante diante das perseguições dos fazendeiros invasores do território indígena. Mas o Posto do SPI na Serra do Ororubá ao contrário do que desejam os Xukuru não garantiu suas terras de volta. O órgão federal no máximo fazia assistencialismo com a distribuição de alimentos, roupas, remédios, etc. e mediava os conflitos entre os fazendeiros e os índios explorados pelos invasores de suas terras.
A partir de fins dos anos 1980 após a participação na campanha da Constituinte, com a atuação marcante do Cacique “Xicão”, os Xukuru retomam a mobilização por seus direitos. Motivados pelas conquistas expressas na Constituição de 1988 e contando com o apoio de outros povos indígenas no Nordeste e de setores da sociedade civil, como o Conselho Indigenista Missionário/ CIMI, órgão da Igreja Católica/CNBB, os Xukuru iniciaram a retomada de seu território tradicional, reocupando áreas de várias fazendas até então nas mãos de posseiros. Ainda na mesma década os Xukuru escolheram se autodenominarem Xukuru do Ororubá, para não serem confundidos com os Xukuru-Kariri na sua maioria habitantes em Palmeira dos Índios/AL.
Além de ser uma liderança carismática para o seu povo, a atuação do Cacique “Xicão” foi bastante significativa para o povo Xukuru. Sob sua liderança os Xukuru pressionaram os órgãos públicos pelo reconhecimento de seus direitos e a demarcação de suas terras. Sob sua liderança as áreas do território indígena foram retomadas das mãos dos fazendeiros, permitindo que os indígenas pudessem plantar e colher superando a miséria, a fome de anos e voltarem a ter dignidade. A atuação do Cacique “Xicão” provocou a ira dos fazendeiros, da oligarquia de Pesqueira formada por tradicionais invasores das terras Xukuru, financiadores de um pistoleiro que assassinou o Cacique em 20/05/1998. Nos anos seguintes outras lideranças Xukuru como “Xico Quelé” morto numa emboscada em 2001, foram também assassinadas.
As práticas religiosas Xukuru foram perseguidas e proibidas pela polícia a mando dos fazendeiros. A dança do Toré, por ser um ritual coletivo em que os índios se juntavam e podiam discutir a situação de opressão em que viviam também foi impedida pelos fazendeiros. Os Xukuru faziam seus rituais às escondidas nas matas, pois eram acusados de macumbeiros, como relatam os mais velhos. Com a reconquista das suas terras, oficialmente demarcadas pelo Governo Federal em 2001, os Xukuru puderam exercer livremente seus seculares rituais religiosos.
No culto a São João os cristãos católicos lembram à tradição bíblica do santo profeta que buscou a justiça e a verdade. A lembrança do seu nascimento é uma animada festividade popular anualmente celebrada com as fogueiras, com o fogo que ilumina e purifica. Os Xukuru chama-o “Seu São João” ou ainda “Senhor São João”. O santo é também chamado “Caô”, uma influência da presença africana com os escravizados negros na Serra do Ororubá.
Em setembro os Xukuru celebram também a Festa de São Miguel, santo que nomeia o salão que abriga os índios quando eles vêm participar de reuniões e de festividades na Vila de Cimbres. São Miguel é o arcanjo que anunciou o nascimento Jesus, o primo de São João. São Miguel é sempre representado com uma espada simbolizando a Justiça. O mensageiro da justiça divina.
Nessas festas religiosas os Xukuru se apropriaram dos santos católicos romanos e atribuíram a eles novos significados. A história, as vidas desses dois são relidas, rememoradas a partir dos horizontes e interesses da história Xukuru, da situação em que vivem os índios. São João e São Miguel foram incorporados aos cultos Xukuru como símbolos da justiça, diante das injustiças e perseguições contra os índios. Como símbolos de força, coragem e incentivo para os Xukuru se mobilizarem pelos seus direitos.
Na festa de São João os Xukuru comparecem anualmente a Vila de Cimbres com seus adornos que são vestidos especialmente nesses momentos festivos. A Festa de São João além de ser uma expressão da cultura, por meio dos rituais religiosos, é antes de tudo uma forma de afirmação da identidade indígena Xukuru do Ororubá.
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*Doutor em História Social da Cultura na UNICAMP. Mestre em História pela UFPE. Leciona História no Col. de Aplicação/CENTRO DE EDUCAÇÃO-UFPE e no Curso de Especialização em Ensino de História e Ensino das Artes e das Religiões na UFRPE. Pesquisador da história indígena em Pernambuco, particularmente sobre os Xukuru do Ororubá, com vários artigos publicados sobre o assunto.
E-mail: edson.edsilva@gmail.com
Um comentário:
Tenho certeza que o cacique será absolvido pelo Tribunal Federal.
Anya
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