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"A arte milenar de educar dos povos indígenas”: garantia de alteridade
Por Sunamita Silva de Oliveira Albuquerque*
Inicialmente, é importante distinguir Educação Indígena do que é a Educação Escolar Indígena. A educação indígena refere-se aos processos de produção e socialização cotidianamente dos conhecimentos pelos próprios povos indígenas, enquanto a educação escolar indígena diz respeito aos processos de transmissão e produção de conhecimentos e aprendizagem não indígenas e indígenas por meio da escola, que é uma instituição originalmente dos povos colonizadores (LUCIANO, 2006, p. 129).
Sobreviver a ação etnocida dos colonizadores, resistir as diversas tentativas de massificação e integração a sociedade nacional, as custas da perda de algumas de suas línguas, mas não de suas culturas, demonstra não apenas a força de vários povos, que “teimam” em manter-se vivos, mas também, sua organização e autonomia das ações pedagógicas, ou seja, ensinamentos que foram e continuam sendo repassados de geração em geração, garantindo a manutenção de um modo de vida que lhes é peculiar.
A ação pedagógica tradicional integra sobretudo três círculos relacionados entre si: a língua, a economia e o parentesco. São os círculos de toda cultura integrada. De todos eles, porém, a língua é o mais amplo e complexo. O modo como se vive esse sistema de relações caracteriza cada um dos povos indígenas. O modo como se transmite para seus membros, especialmente para os mais jovens, isso é a ação pedagógica. Conforme nos explica Melià (1999),
Os povos indígenas sustentaram sua alteridade graças a estratégias próprias, das quais uma foi precisamente a ação pedagógica. Em outros termos, continua havendo nesses povos uma educação indígena que permite que o modo de ser e a cultura venham a se reproduzir nas novas gerações, mas também que essas sociedades encarem com relativo sucesso situações novas.
A comunidade indígena, tanto como povo quanto como aldeia, tem uma racionalidade operante que temos que saber descobrir para que as novas ações pedagógicas possam praticá-la. A esse respeito afirmou Melià (1999, p.16):
Por diversos motivos a educação indígena teve momentos de excessivo acanhamento, quase sem coragem para reclamar sua autonomia e seus direitos. A educação indígena não é a mão estendida à espera de uma esmola. É a mão cheia que oferece às nossas sociedades uma alteridade e uma diferença, que nós já perdemos. O ava haicha é uma fonte de inspiração, não uma simples condescendência para povos minoritários. A alteridade indígena como fruto da ação pedagógica não só manterá sua diferença, mas também poderá contribuir para que haja um mundo mais humano de pessoas livres na sua alteridade.(grifos nossos).
De acordo com a pesquisadora Fúlvia Rosemberg (2005, in CCLF), “é durante os primeiros anos de vida que as crianças absorvem os componentes básicos de sua família/comunidade, como: língua materna, visão de mundo, religião, valores, lealdades, afetos, vínculos familiares – o que torna a Educação Infantil uma opção, e não uma obrigação, da família”.
Sobre a possibilidade de implementação da educação infantil, cogita-se um possível comprometimento na aquisição de alteridade da criança indígena, diante da qual, Tassinari (2000, p. ) apresenta este questionamento:
Caso a criança indígena não tenha totalmente desenvolvido e assimilado seu pertencimento sócio identitário, como estará apta para transitar entre fronteiras e participar deste intenso e dinâmico processo de negociação entre culturas distintas?
Longe de termos resposta para estas questões, ainda nos deparamos com diversos outros questionamentos advindos das inquietações e dúvidas apresentadas pelos povos indígenas do Brasil, quanto à implementação da Educação Infantil nas escolas indígenas. Ampliando o debate e trazendo mais reflexões, a pesquisadora Fúlvia Rosemberg (2005, in CCLF) provoca:
Onde situamos os interesses das crianças indígenas no debate sobre educação infantil? Quais são os interesses/necessidades das crianças pequenas indígenas em termos de educação e cuidado? Coincidem com os da comunidade? Coincidem com os das crianças não indígenas vivendo em famílias e sociedades não indígenas?
Algumas distinções entre o “educar” da sociedade envolvente e a educação indígena ampliam nossos questionamentos, no que concerne as maneiras encontradas para se repassar um ensinamento e os valores atrelados a ele. Em um relato da professora Eliane Gonçalves de Lima, uma índia Terena, percebemos nitidamente algumas destas disparidades. A professora afirma que “a educação indígena não concebe dentro das reservas: filhos ou filhas abandonados, adolescentes grávidas sem constituir família, a punição geralmente é feita oralmente”. Ela prossegue afirmando que:
O respeito aos mais velhos se estende de casa para a escola, onde o(a) professor(a) indígenas, possui o papel de organizar e dialogar com os saberes tradicionais e os conhecimentos universais, não se observando nenhum tipo de punição na educação das crianças [...] Podemos exemplificar a maneira como os adultos dedicam seu tempo para a criança indígena, pois não existe pressa para terminar as atividades e os adultos sempre estão dispostos a repetir o que se está ensinando, por muitas e muitas vezes, até mesmo por que todas as atividades que devem ser aprendidas possuem uma aplicabilidade na vida diária: o cuidado com a criação, pegar a galinha para uma refeição, colher milho, debulhar, separar a palha, descascar mandioca, arrancar mandioca, são atividades que se aprende brincando diariamente. (LIMA, E.G. ,2008)
De acordo com Fernandes (1989, citado por Melià, p. 12), “numa sociedade tradicionalista, sagrada, fechada, o foco da educação deriva, material, estrutural e dinamicamente, das tendências de perpetuação da ordem social estabelecida”. O autor prossegue sua atribuição afirmando que a educação: “(...) não visa preparar o homem para a “experiência nova”; mas prepará-lo para “conformar-se aos outros”, sem perder a capacidade de realizar-se como pessoa e de ser útil à coletividade como um todo”.
Ainda segundo Melià (1979, p. 13) a educação indígena é ensinar e aprender cultura, durante toda a vida e em todos os aspectos. A análise do sistema educativo de um povo indígena vem a confundir-se com o estudo total da sua cultura. De acordo com Schaden (1976, citado por Melià, 1979), “para compreender o processo educativo numa tribo qualquer, seria necessário a rigor, conhecer a fundo o sistema sociocultural a que ela corresponde”.
A educação indígena é difícil de analisar principalmente porque não é parcelada. Descrever a educação indígena no Brasil seria quase descrever o dia -a- dia de todas as aldeias, de todas as comunidades indígenas, que simplesmente vivendo, estão se educando. (IDEM, 1979. p. 18)
Um ponto em comum encontrado em diversos relatos de como se processa a Educação Indígena é, a ausência de castigos físicos no processo de ensino-aprendizagem das crianças indígenas. Sobre isso, uma mãe Guarani Kaiowá nos instrui dizendo que “a criança começa a andar, a falar e é aconselhada sem violência. Ela aprende por imitação: a respeitar os mais velhos, o sagrado, relacionado muito com a natureza. A idade mínima para ingressar na escola seria oito anos. Separar muito cedo da família... Toda aprendizagem da família não vai preservar: danças, rezas... Para a criança ser feliz: ter liberdade e participar de todos os eventos indígenas porque em todos esses momentos estão sendo vistos pelo Pai Nhanderu”.
Um sentimento que inquieta diversos professores, preocupados com os rumos que tem tomado a educação em nosso país, foram traduzidos pela pesquisadora Mirian Lange Noal, em 1996, quando pesquisava entre os povos Guarani-Kaiowá (MS), acerca da forma como conduzem a educação de suas crianças. Ela justifica informando que:
A pesquisa nasceu de uma inquietação, construída em mais de trinta anos de magistério, sobre a possibilidade de uma educação fundamentada no respeito, que garanta autonomia às crianças pequenas. Será possível cuidar e educar essas crianças sem impor, sem vigiar, sem castigar? Nessa busca, convivendo com comunidades indígenas, percebi uma pedagogia que há muito tempo buscava, uma pedagogia que educa, cuida e protege sem reprimir, proibir, agredir.
Suas constatações foram de que “os adultos indígenas, em geral, não agem com ansiedade ou nervosismo, mas, do seu jeito, observam as crianças pequenas, de uma forma bem mais atenta do que possa parecer ao primeiro olhar, mesmo sem interferir no que fazem. Essa atitude permite que as crianças sintam-se livres e soltas embora cuidadas e protegidas” (NOAL, 1996).
Este não é um registro isolado acerca dos aspectos diferenciados presentes na educação indígena, encontrando na pesquisa de Nunes (1999, citada por Lopes, 2002), o respaldo que procurávamos. Durante sua estadia entre os A'uwẽ-Xavante, do Mato Grosso, suas observações destacaram a liberdade que as crianças experimentam em seu dia a dia, levando-nos a realizar um confronto com as ideias das quais compartilhamos. Ela observa que
No debate que se tem empreendido quanto ao espaço social da infância nas sociedades europeias, em sua inter-relação com os adultos, são frequentes a referencias à exclusão e separação da primeira do mundo dos segundos. Fala-se também, da infância como o momento da vida em que mais existe um constante e abrangente controle por parte dos adultos, num rol de proibições e limites sobre os quais as crianças raramente são chamadas a opinar.
A pesquisadora enfatiza ainda que “esse crescente grau de especialização ao qual os adultos recorrem para resolver as questões da infância (e adolescência), paradoxalmente, parece não ter acarretado uma melhoria à vida das crianças (e adolescentes) uma vez que há mais indicadores de desajustes do que ajuste destes à sociedade envolvente [...] As observações realizadas nas sociedades indígenas brasileiras, de modo unânime, apontam na direção oposta [...] (NUNES, 1999, p.71).
Não seria exagero de nossa parte ratificar a existência de um grande legado das sociedades anágrafas para com a elaboração e contextualização dos métodos educacionais almejados por pais e educadores de como educar as crianças.
A educação tradicional indígena tem dado certo. As pessoas se sentem completas quando percebem que a completude só é possível num contexto social, coletivo. Cada fase porque passa um indígena – desde a mais tenra idade – alimenta um olhar para o todo, pois o conhecimento que aprendem e vivem é um saber holístico que não se desdobra em mil especialidades, mas compreende o humano como uma unidade integrada a um Todo maior e Único. Olhar os povos indígenas brasileiros a partir de uma visão rasa de produção, de consumo, de riqueza e pobreza é, no mínimo, esvaziar os sentidos que buscam para si. (MUNDURUKU, 2009)
Munduruku (2009) faz ainda uma referencia a este tipo de educação classificando-a como a arte milenar dos povos indígenas, onde, de acordo com ele a educação tradicional entre os povos indígenas se preocupa com a tríplice necessidade humana: do corpo, da mente e do espírito. “É uma preocupação que entende o corpo como algo prenhe de necessidades para poder se manter vivo”, ele afirma. E prossegue:
Esta visão de educação é sustentada pela ideia de que cada ser humano precisa viver intensamente seu momento. A criança indígena é, então, provocada para ser radicalmente criança. Não se pergunta nunca a ela o que pretende ser quando crescer. Ela sabe que nada será se não viver plenamente seu ser infantil. Nada será por que já é. Não precisará esperar crescer para ser alguém. Para ela é apresentado o desafio de viver plenamente seu ser infantil para que depois, quando estiver vivendo outra fase da vida, não se sinta vazia de infância. A ela são oferecidas atividades educativas para que aprenda enquanto brinca e brinque enquanto aprende num processo contínuo que irá fazê-la perceber que tudo faz parte de uma grande teia que se une ao infinito. (IDEM, 2009).
Quanto a educação indígena, a linguista Maher (1991, citada por Scandiuzzi, 2009) por exemplo, preferiu não discuti-la, considerando que “dificilmente poderíamos compreendê-la”, tudo isso sem pensar que eles sejam 'bons selvagens'”. A linguista justifica explicando que a educação indígena “vem permeada de mitos e ritos, além de ser uma educação que dá certo”. Ela defende ainda ser esta “uma educação que deixa as futuras gerações hospitaleiras, que continuam com o dom da reciprocidade, uma educação que os torna cidadãos do mundo ao qual eles pertencem.
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* Sunamita Silva de Oliveira Albuquerque, Pedagoga, pós-graduanda em Psicopedagogia pela FACOL, cursando o 4º Período de Licenciatura em História pela UFRPE/UAB. Educadora há 10 anos em escolas públicas. Indigenista por opção.
Artigo integrante da Monografia: EDUCAÇÃO INDÍGENA E EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA INFANTIL XUKURU DO ORORUBÁ (PESQUEIRA/POÇÃO-PE) elaborada para obtenção do título de Pedagoga, pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Gravatá/PE, 22/10/2011
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