“Meu interesse ao escrever um livro é dialogar com crianças e jovens.
Procuro encontrar um cantinho na cabeça deles”, diz Daniel Munduruku,
escritor indígena graduado em filosofia e educador social, ao abordar a
reprodução da cultura indígena e o processo de criação de suas obras.
Com mais de 40 livros publicados, Daniel esteve em vários países da
Europa, participando de conferências e ministrando oficinas culturais
para crianças, com o intuito de dialogar sobre a cultura indígena. Ele
conta que nunca escolheu ser escritor, contudo, o fato de ter algo a
dizer sobre seu povo o motivava a fazer com que sua própria história e a
de seus ancestrais fosse registrada e disseminada. “A escrita foi
tomando conta de mim e, aos poucos, fui me aceitando: aceitando o fato
de que minha escrita tem algo a dizer, aceitando ser dono de um estilo
de narrativa que me foi oferecido por meus antepassados”, ressalta.
Apesar de tudo o que é feito para retratar e propagar a cultura
indígena, o autor aponta que ainda há muito a ser feito. “A cultura
indígena ainda é vista como folclórica. Isso é fruto de uma política que
sempre tratou os indígenas como seres do passado, parados no tempo, sem
história”, relata. “O resultado disso tem sido desastroso para a
própria sociedade, pois acabou negando a participação efetiva de nossa
gente indígena na composição da identidade nacional.”
Pela Global Editora, Daniel tem publicadas as seguintes obras: A Caveira Rolante, A Mulher-Lesma e Outras Histórias Indígenas de Assustar, A Palavra do Grande Chefe, A Primeira Estrela que Vejo É a Estrela do Meu Desejo e Outras Histórias Indígenas de Amor, Contos Indígenas Brasileiros, O Banquete dos Deuses, Outras Tantas Histórias Indígenas de Origem das Coisas e do Universo, Parece que Foi Ontem, Sabedoria das Águas, Você Lembra, Pai?, além de integrar as antologias Conto Com Você e Um Fio de Prosa.
Confira a entrevista completa com o autor:
A partir de que momento você decidiu que queria ser escritor?
A escrita foi tomando conta de mim. Nunca escolhi ser escritor, mas me
deixei contaminar pela doença que é escrever. Aos poucos, fui aceitando o
fato de que minha escrita tem algo a dizer, aceitando ser dono de um
estilo de narrativa que me foi oferecido por meus antepassados. A eles
sou sempre grato.
Em seus livros, que aspectos da cultura indígena você procura retratar?
Meu interesse ao escrever um livro é dialogar com crianças e jovens.
Procuro encontrar um cantinho na cabeça deles. Sei que há muito
preconceito com relação às populações indígenas, mas procuro ocupar esse
espaço com assuntos que podem substituir o olhar equivocado. Talvez
seja por isso que crio e conto histórias, reconto histórias tradicionais
e trago informações. Ainda há muito a ser dito sobre a cultura
indígena. E é pensando nisso que incentivo os jovens indígenas a
escreverem suas histórias, pois não tenho sensibilidade suficiente para
tratar de toda a magia que envolve nossa gente.
Como você enxerga a reprodução da cultura indígena na sociedade?
Infelizmente a cultura indígena é ainda vista como folclórica. Isso é
fruto de uma política que sempre tratou os indígenas como seres do
passado, parados no tempo, sem história. A sociedade brasileira acabou
incorporando esse equivoco e aceitando como uma verdade absoluta. O
resultado tem sido desastroso para a própria sociedade, pois acabou
negando a participação efetiva de nossa gente na composição da
identidade nacional. Além disso, esconde, não sem cinismo, o componente
indígena de seu DNA.
De onde surge a inspiração para seus livros?
Meus textos são frutos de minha observação da realidade. Procuro não
esquecer a beleza que há em cada momento, mesmo que não seja muito
favorável. Busco o invisível num mundo onde reina apenas a aparência.
Procuro não julgar, mas compreender. É dessa postura que nasce minha
inspiração. Ela nasce no momento em que fecho os olhos para enxergar
melhor.
Como educador, qual você considera ser a maior barreira quando se trata da disseminação da cultura indígena?
A maior barreira está no interior dos educadores. Educar é professar um
ato de fé no ser humano. Para fazê-lo, é necessário saber fechar os
olhos para se jogar em um abismo do improvável. O problema maior é que
grande parte dos educadores não acredita em si mesmo. Ou seja, não é
capaz de fechar os olhos para enxergar melhor a si mesmo e ver que há
nele um universo inteiro que clama por uma verdadeira humanidade. Não
crendo em si mesmo, como pode crer nas outras pessoas? Como educar para a
diversidade? Como poderá ver a beleza que há no outro? Educar é sair de
si e ir ao encontro do outro. É um ato de generosidade, de renúncia.
Numa sociedade onde o que vale é o egoísmo, parece que pedir isso de
alguém é absoluta falta de bom senso. Mas é justamente aí que mora a
grande dificuldade da educação nacional.
Apesar do que vem sendo feito para propagar a cultura indígena,
de que forma você acredita que a sociedade pode contribuir para que essa
cultura seja, cada vez mais, difundida?
A cultura indígena não precisa ser difundida. Não creio que os povos
nativos estejam desejando ser melhor compreendidos ou conhecidos. A luta
deles tem sido em direção de se sentirem parte da sociedade. O que tem
ocorrido é uma invisibilidade patrocinada pelo sistema capitalista que
prima pela destruição das diferenças procurando homogeneizá-las através
do processo educativo. Penso que o melhor caminho é o da tolerância.
Isso passa pela educação familiar e não pela escola. Aprende-se a
respeitar o outro observando o exemplo dos adultos, mas a escola tem
sido o lugar do desaprendizado, pois ensina a separação, a divisão, a
multiplicação, o controle do outro, o domínio e o poder. Tolerar é
deixar que o outro seja quem ele quiser ser e não o que desejamos para
ele. Quando o outro pode ser plenamente o que é, a beleza acontece. É um
aceitando o que é belo no outro e não acentuando o que há de feio, de
triste. Isso é valorizar o menos ao invés do mais. Precisamos construir o
caminho da tolerância, do respeito ao outro, do encontro com a
diversidade.
Com tanta influência dos meios externos, quais são as maiores dificuldades das povos indígenas para manter sua tradição?
Quero deixar claro que há um equivoco ao ligar a tradição como algo do
passado longínquo. Tradição é um método de manutenção da cultura. Método
é caminho e caminho é movimento. Se há caminho, há segurança,
continuidade. Manter a tradição não é andar sempre pelo mesmo caminho,
mas não permitir que esqueçamos o caminho já percorrido. Este é o
desafio dos povos indígenas hoje: como percorrer os caminhos que temos
pela frente sem sair do caminho construído por nossos pais. Manter a
tradição é, pois, ser fiel ao que nos foi ensinado. E o que nos foi
ensinado? Que temos de viver o momento presente com a intensidade que
ele se nos apresenta. E justamente por respeitarmos a tradição é que
temos que fazer o exercício contínuo de atualizar a memória ancestral
utilizando os instrumentos que hoje temos a nossa disposição. Portanto,
dominar as novas tecnologias da informação e servir-se delas para
difundir o caminho dos antepassados e construir uma nova relação com a
sociedade nacional, é a melhor forma de nos sentirmos partícipes do
universo sonhado pelos espíritos criadores.
http://www.globaleditora.com.br/noticias/abordagem-da-cultura-indigena-nas-obras-de-daniel-munduruku/
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